Eu estava na parada do lotação quando chegou meu ex-aluno Jaime. Ele faz mestrado em Filosofia com Ernildo Stein (diz Sssstein, como todo filósofo com pretensões sérias), é muito inteligente, heideggeriano (?) e bom de bola. Ao ver que eu carregava um volume das 'Seis Propostas para o Próximo Milênio', de Ítalo Calvino, abriu um sorriso e fez uma confissão: 'É ótimo para alimentar um papo intelectual com as gatinhas na balada'. Fiquei imaginando a conversa nos bares trepidantes da Cidade Baixa. Pedi que explicasse: 'Ora, qual mulher não ia gostar de um homem que tenha leveza e consistência?'. As propostas do grande escritor Calvino, obviamente, referem-se ao texto literário para o nosso milênio. Eram aulas que ele deveria dar, como convidado, nos Estados Unidos. Ficaram conhecidas também como 'Lições Americanas'. Calvino teve tempo de preparar os temas sobre leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Morreu antes de chegar na consistência. É o que mais acontece. Jaime não deixou de observar esse detalhe. Tenho certeza de que, nas suas lições porto-alegrenses, ele completa o quadro com muita ginga e malícia. Eu estava relendo Calvino para participar de um debate com o psicanalista Sérgio Lewkowicz, organizado pelo dr. Rui Annes. O diálogo com Jaime acendeu uma 'lamparina' no meu cérebro corroído pela novela das oito. Resolvi pensar nas seis propostas voltadas para o homem deste milênio: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Calvino é considerado um gênio. Mas não me toca o coração. As suas seis lições, relidas depois de 19 anos, pareceram-me problemáticas. Leveza: um tanto pesada. Tem uma passagem assim: 'Esse paralelo de imagens, em que a graça sutil do coral aflora o fero horror do Górgona...'. Uau! Como será que as gurias da Cidade Baixa reagem a essa citação? Rapidez: um pouco lenta. E assim por diante. Aplicadas ao homem do imaginário feminino, segundo uma leitura masculina, entretanto, estou convencido de que podem funcionar. No fundo, é o que Jaime já anda testando. O homem deste milênio precisa ter leveza. Fazer a mulher rir. Nem que seja para não chorar. Deve ser rápido. No gatilho. Seja para conquistá-la. Seja para salvá-la dos bandidos. De todo tipo. A exatidão é fundamental por várias razões: mulher detesta homem mentiroso. Deve-se mentir somente quando se tem certeza de que elas sabem que não é verdade. Por exemplo: 'Notou que eu cortei o cabelo, amor?'. 'Claro, como não ia notar? Deve ter sido um talho de quase um milímetro.' Além disso, a exatidão é essencial na hora de pagar a pensão. Em contrário, dá rolo e até cadeia. Visibilidade. É o principal em nossa época. Homem famoso salta na frente. Bonito, nem se fala. Com uma tatuagem gigantesca, ganha pontos. Nada pior do que um homem invisível. Ainda assim, é preciso ser visível com discrição. Tipo Gianecchini. Meio tímido, misterioso, mas banhado pelos holofotes. Mulher não gosta de homem galinha. Os machistas dizem que é uma questão de divisão de papéis. As sofisticadas detestam homem metido a galo. Não é fácil a vida do homem hipermoderno! Mulher quer um homem múltiplo: bom pai, excelente marido, amante selvagem, profissional bem-sucedido, másculo, sensível, decidido, que discuta a relação, capaz de preparar como ninguém tomates secos com folhas verdes. E a consistência? Se não der tempo, fica para a próxima. Mulher. Ou vida.
Era para ser um devaneio de pizzas entre amigos da Medina e amigos do “prestígio”. E não que não tenha sido isso também. Montezuma (cadu), o pizzaiolo, era também o anfitrião do evento. Ou seja, o palco dos acontecimentos foi à casa do triunvirato tricolor: “Guigo liro”, Miguel e Montezuma. Também conhecida como a “República tricolor”. Obviamente lá me sinto em casa. Aliás, por um pequeno detalhe financeiro da vida não fui morar lá. Seríamos cadu, guigo liro e eu. Acabou que o querido novo amigo “miguelito” foi para o meu lugar. Ou melhor, para o “seu” lugar, ao passo que nunca se concretizara como meu. Importante observar, ainda, que acho a república mais equilibrada com a constituição que tem. Não conheço bem ainda o Miguel, mas a minha percepção sensível já manifestou maturidade, inteligência e jogo-de-cintura no miguelito. Ele é “nego-véio”, como se costuma falar. E desde a sua presença, assim, garante equilíbrio à república. Mas miguelito não se fazia presente à noite a ser relatada. Estava em Bagé, a trabalho, pelo que o cadu havia dito. O prestígio é um amigo da Medina e do cadu que mora nos EUA. Parece que está se doutorando em economia por lá. Está no Brasil até o dia 31 de dezembro, pois veio passar o natal próximo à família. Pois o prestígio combinou com a Medina e com o cadu a rodada de pizzas e cevas na república. O prestígio já havia avisado que levaria um antigo amigo que ele não via fazia algum tempo. O cadu me falou que o tal sujeito tinha sido envolvido com política estudantil, que tinha sido presidente do DCE da PUC, como também presidente do centro estudantil do direito. Sim. O tal sujeito é advogado. E não poderia ter se mostrado diferente. Como a maioria dos bacharéis, seus papos foram quase todos furados. Tal diagnóstico foi universal ante aos personagens da janta. Estava, eu, cadu, guigo liro, prestígio, o tal sujeito, Medina e primaninha. Todos tentaram. Ninguém conseguiu. O tal sujeito se mostrou intragável no diálogo cotidiano. Quando se falou em política, seu viés conservador e “umbiguista paranóide” aflorou. O sujeito relatou a sua trajetória como uma epopéia. Detalhe é que seus parceiros de trajetória eram todos vinculados à orientação política de direita na cena política da província. A epopéia na boca de seu relator transformava cada fato narrado em “sujeira” aos ouvidos dos interlocutores. E pior ainda ficava quando ele decidia falar sobre si mesmo. O sujeito se autopredicou com afinco. Como um categórico representante da OAB desfilou seu narcisismo e excesso de amor próprio. Em um momento, em um diálogo com a prima, fez questão de referir: “sou colorado, de Alegrete e advogado!”. E a prima achando bizarro respondeu: “puxa vida!”. E relatou depois ter pensado: “nem no time de futebol o sujeito demonstra alguma inteligência.”. O mais engraçado é que hoje em dia eu acho até meio chato o papo sobre política. Mas com aquele sujeito às raízes vieram à tona. E não tinha como não acontecer. Muito embora a minha condição de ex-petista e ex-atuante, o sangue “vermelho” pulsou fortemente as minhas antigas convicções. Guigo liro já o refutara certamente com categoria. Cadu também com a devida elegância já pontuara o ridículo de algumas falas do sujeito. Coube-me apenas finalizar o sujeito, com o deboche ultimo da noite. Era a hora das despedidas. E alguém sugerira uma foto da confraternização. Achei a idéia de última categoria. Guigo liro também. Sabiamente se refugiou em seu quarto. Fui vencido pelo espírito do povo. Estávamos em uma republica, logo a democracia opinou pela foto. Cadu também não a queria, mas corretamente silenciou frente a sua condição de anfitrião. Ele jamais seria descortês em tal dada circunstância. Quando estávamos todos – menos guigo liro – posados para o retrato, desistiu-se dada à ausência do guigo. Evocou-se a sua presença. Eu que já estava bem satisfeito com o cancelamento me assustei com o re-torno da idéia.O guigo liro havia voltado à sala. Medina era a dona da máquina. E a medi-maravilha sempre tira retratos legais e perspicazes. Mas aquele era indesejado. Quando se firmou novamente a perspectiva, veio da minha veia o impulso dirigente. Lembrei do conhecido vídeo da primeira campanha vitoriosa do Lula à presidência da república. Estão nele José Dirceu, Lula, Gushiken, Duda Mendonça e outros, ou seja, toda a camarilha dirigente da chegada ao planalto. No vídeo aparece o José Dirceu cancelando as filmagens da reunião estratégica da cúpula, sob argumento de que não há confiança possível em meio aos meandros da política tupiniquim. É impressionante o tirocínio de Dirceu. Sabedor do poder que uma imagem mal-divulgada pode gerar, ele é implacável. Alguém ainda tenta amenizar (acredito que seja à voz de Guido Mântega): “calma, ‘Zé’, é pro documentário do João Salles, ele é de confiança...”; Dirceu manda cancelar a filmagem na hora. Sua visão da possibilidade que aquele vídeo poderia criar, não permite meias palavras. Pois, em uma rápida fração de segundos, manifestei o mesmo argumento adaptado à circunstância criada na república. Bati suavemente contra a mesa com a minha mão esquerda, a qual possui um anel onde carrego o sol maia comigo, e fiz à interjeição: “sabem aquele vídeo do José Dirceu, onde ele questiona à produção de imagens de uma reunião do PT, na primeira campanha vitoriosa?” E assim prossegui: “pois, então, estou aderindo ao mesmo princípio e questionando a eternização fotográfica deste momento!”; “vai saber o futuro que os ‘sujeitos’ tomarão, e assim é melhor não reproduzirmos relações que talvez nem existam”, conclui. Assim levantei e fui à cozinha buscar uma gelada. De lá saí quando tinham restado apenas guigo liro, cadu, e primaninha. As reações frente à tomada de posição foram diversificadas. Os que conheciam ao vídeo de longa data, isto é, cadu e guigo liro, se mataram dando risada e assim se divertiram com o deboche. Prestígio e o sujeito, pelo que me relataram, não compreenderam bem à brincadeira. Não vi as suas reações, pois estava ocupado com a cerveja na geladeira. Primaninha disse não conhecer ao vídeo, mas desde pronto “se pilhou” por conhecê-lo. Abrimos uma rodada de ceva para dar algumas risadas ao assistirmos a sombria visão de Dirceu. Sim. Assumo que para visualizar o sombrio, é necessário conhecê-lo. Guigo liro não deixou de “tirar” uma com a minha cara: “bah, o jayminho é do mal”; caindo na gargalhada imediatamente. Não, não que eu seja do mal. Apenas sei que tenho o meu lado sombrio, e que quiçá sua finalidade seja atuar em momentos como tal. Aliás, as pessoas todas têm uma faceta sombria. Acredito ser a grande questão com relação a esse ponto, o domínio e a correta utilização dessa natural propriedade dos seres humanos. Comentei com o cadu que os acontecimentos tragicômicos deveriam ser chamados de “idos de dezembro na república tricolor”. Manifesta referência aos acontecimentos dos “idos de março” na “Tragédia de Júlio César” de Shaekspeare. Referência perfeita na correspondência com a situação vivenciada àquela noite, com relação à possibilidade da traição. Cadu com a sua arguta sagacidade apenas pontuou: “montezuma, vai que o ‘cara’ se envolve em algum ‘esquema’, daqui alguns anos, e se tem uma foto registrando aquela ocasião, né?!”.
"Amar não é apoderar-se do outro para completar-se, mas se dar ao outro para o completar.” Fernando Pessoa
(Não) somos responsáveis por aqueles que cativamos?
Pois é, eu, Juju e otros(as) brincamos que o nome do grupo seria coesão. Leia-se, “co-e-são”. Mas o “e” deve ser lido de maneira fraca. Quase um “co-i-são”. É um bom nome para um grupo de amigos. Lugar onde às coisas devem ser feitas com coesão. Ademais em um encontro de pessoas que não têm algum objeto como fundamento de tal encontro. Isto é, não há algo na realidade que seja a essência do laço de tais pessoas. Não somos todos advogados, biomédicos, fisioterapeutas, psicólogos, arquitetos, ou, qualquer profissão que o valha. Não somos todos de um time só, ou seja, somos gremistas e colorados. Não somos todos de esquerda, ou de direita, mas todos minimamente politizados. Não temos uma identidade só. Poderia sintetizar assim. Estamos jogados na diferença. E essa propriedade representa sempre coisas concretas. Neste caso relações concretas. Se fossemos nos candidatar para algo, quiçá nosso slogan fosse: “concretude e co-e-são”! Não desejamos. Ainda. Depois do findado deputado Clodovil, se espera qualquer coisa da política tupiniquim. Deixemos de lado as mazelas do poder, pois o assunto é de potencial no “co-e-são”. Falávamos da diferença que nos funda. Diferença existencial. Percebida em nossas práticas, corroboradas pelas nossas estórias. Sempre me sentia deslocado, nos grupos que freqüentava, pois costumeiramente eram os sujeitos todos iguais. Surfistas, filhos de famílias “american way of life”, apaixonados pela acadêmia e manutenção do corpo. Não tinha como eu não significar a diferença. Talvez, por vezes, como fruto da sensibilidade mais tosca, “o diferente”. De fato, a diversidade impede o conforto da unidade. Nenhuma mágoa em jogo. Encontrei a minha turma. E nossa “acadêmia” é outra. Enfim, a diferença também implica a discordância sobre alguns assuntos. Estávamos, cadu, eu, juju e “primaninha”, quando surgiu a seguinte questão: “somos responsáveis por aqueles que cativamos?”. O tema surgiu, talvez, fruto de alguns acontecimentos recentes na vida de alguns. Mas surgiu de forma in-consciente. Pois estávamos etilicamente abstratos ao chegar nesse ponto. A questão se apresentou com envergadura. Discordamos dois à dois. Antes de relatar às posições, melhor esclarecer o sentido da questão. Nos indagávamos se há responsabilidade quando um sujeito se apaixona, ou gosta de outro, e faz nesse outro nascer um sentimento. Há responsabilidade para esse sujeito com relação ao sentimento brotado? Afinal, aplicando a “eterna” fórmula de Saint-Exupéry, às relações entre pares, se confirma ou não à responsabilidade defendida pelo pequeno príncipe? Primaninha e “montezuma” (cadu) julgaram que não há dita responsabilidade. Juju e eu sustentamos a sua existência. O argumento deles é forte. Defendem que não há independência entre as partes quando somos responsáveis pelo sentimento do outro. Sem independência acaba faltando oxigênio. E sem o ar não respiramos. É fato, ser responsável pelo sentimento do outro não pode significar cobranças oriundas de nossas carências. Devemos trazer o “minimo existencial” constituinte de nossa individualidade, para que no cotidiano “ser-com” o outro, possamos ter a posse da própria vida e melhor aproveitar a conjugação dos mundos. Entretanto, eu e juju não ficamos atrás. Sustentamos que quando se vive à abertura ao coração, o outro merece nossa responsabilidade dada à reciprocidade em tal abertura. Se o outro está se abrindo exatamente pelo que está sentindo, então o vínculo está formado. Ensejamos à abertura no coração do outro a partir do sentimento que nos é dirigido. Ou seja, há uma parte da estrada de um no caminho do outro. É muito fácil cairmos da individualidade no individualismo. Aliás, é uma humana inclinação. Ter o “mínimo existencial” de responsabilidade com o sentimento do outro, parece um importante critério de regulação dessa queda. Senão corremos o risco de cair no “vale-tudo”. E quem cai neste tipo de “luta” termina levando chute-na-cara. Talvez tão doloroso quanto levar o pé-na-bunda. Tão doloroso enquanto sentimento que se dá quando o outro não se responsabiliza por nós. Aquelas situações em que o outro age conosco, como se fossemos apenas “mais um(a)”. Mas se eramos especiais, por que não respeitar o espaço cativado? Indaguemos uns aos outros, somos ou não, afinal, responsáveis por aqueles que cativamos? Está mais uma vez re-lançada a demanda. E você, já se perguntou o que significa cativar?
DO TEMPO DO AMOR (Reflexões a partir de um filme e de uma canção)
Chico Buarque já havia dito que os amores seriam sempre amáveis. Coube ao competente diretor de cinema argentino Alejandro Agrestí, entretanto, reforçar o pensamento do mestre Carioca. Ao presentear os espectadores com o americano “The Lake House” (A Casa do Lago), Agrestí refletiu novamente a vida a partir das minúcias humanas. Como havia feito em “Uma Noite com Sabrina Love”, como também em “Valentin”, uma delicada distância afasta pessoas que gostariam de se aproximar. Se o amor do personagem interpretado por Tomás Fonzi está distante da sonhada noite com Sabrina Love, Valentin sofre pela distância ou inexistência do amor de sua mãe, carência que vê reproduzida em todas as mulheres de sua vida, as quais sempre passageiras nunca permanecem consigo; sobretudo depois da perda da avó - única que o amou incondicionalmente. Em “A Casa do Lago”, o amor que separa os personagens Kate e Alex (que conseguiram resistir aos péssimos K. Reaves e S. Bullock) parece refletir exatamente a separação que se dá na vida de muitas pessoas no cotidiano. O tempo no qual vivem o amor um pelo outro não é o mesmo. A solidão afetiva, assim, parece ser o único destino possível. O amor entre pessoas que até seriam em algum futuro – amantes, é mais corriqueiro do que Afrodite gostaria que fosse. São inúmeras às vezes nas quais determinadas pessoas chegam a nossas vidas em um tempo no qual não é o tempo de recebê-las. Tempo no qual não estamos preparados para acolher e tampouco nos permitir ser acolhidos. Pouco antes ou instantes depois... Esta barreira do “timing” da chegada-do-outro em nossa vida, está entregue ao acaso nos deixar ou não na porta da casa daquele que amamos. Podemos estar simplesmente nos dirigindo ao trabalho, ou indo à locadora a procura de um filme, e o grande amor de nossa vida estar no horizonte do nosso olhar, entretanto vivendo em um outro tempo que não o do desejado encontro. Quantas vezes, aliás, não imaginamos isso ao entrarmos na locadora e vermos alguém falando sobre um filme que também partilhamos afinidade. São as inúmeras situações que ficamos imaginando quando será o nosso tempo do amor... Tempo em que essa alguma pessoa chegará e constituirá o nosso tempo do amor. Pois nesse ponto dispõe de um extremo realismo o filme do argentino, uma vez que esse é o desígnio principal de sua trama no lago. Embora se trate de um realismo mágico, ao melhor estilo Garcia Márquez, “A Casa do Lago” é de uma sensível recepção para todo aquele que já se indagou acerca do tempo do amor. A experiência da solidão é uma clara referência do diretor à imposição que a vida corriqueiramente nos implica. A dificuldade de viver a dimensão do encontro sempre reflete a existência dos principais personagens de Agrestí. A câmera do argentino, nesse detalhe, é um espelho da realidade contemporânea – seus personagens revelam a marca do homem atual, a saber, estar jogado em meio a melancolia do desencontro. Retornando a Chico Buarque, parece que a canção “Futuros Amantes” deveria ser a trilha sonora de todo o filme do argentino. Chico na canção cria a figura que o amor são partículas soltas no tempo, as quais os amantes apropriam-se para amar. Assim, quando essas partículas estão na posse de algum casal – o amor se faz presente. Acontece que essas partículas de amor, por vezes, vão embora, voltando a restarem soltas no tempo. Transcorrido determinado tempo, outros pares apropriam-se daquela mesma partícula, elo no passado da união de outros amantes. Assim diz a canção de Chico, “Amores serão sempre amáveis, futuros amantes, quiçá, se amarão sem saber, com o amor que eu um dia deixei para você”. Ainda Quando a canção diz: “Não se afobe não, que nada é para já, amores serão sempre amáveis”, vislumbra-se o casal do filme de Agrestí, trocando as suas cartas, tentando imaginar quando poderão se apropriar das partículas de amor que tantos outros já provaram. Canção e película se confundem na perspectiva de revelar que há o tempo do amor. E que devemos estar abertos para experimentá-lo quando presente na porta de nossas vidas.
Jayme Camargo
http://youtu.be/j1qQ9KbIGmo
"Futuros Amantes" – Chico Buarque Não se afobe, não Que nada é pra já O amor não tem pressa Ele pode esperar em silêncio Num fundo de armário Na posta-restante Milênios, milênios No ar E quem sabe, então O Rio será Alguma cidade submersa Os escafandristas virão Explorar sua casa Seu quarto, suas coisas Sua alma, desvãos Sábios em vão Tentarão decifrar O eco de antigas palavras Fragmentos de cartas, poemas Mentiras, retratos Vestígios de estranha civilização Não se afobe, não Que nada é pra já Amores serão sempre amáveis Futuros amantes, quiçá Se amarão sem saber Com o amor que eu um dia Deixei pra você.
Esse é o preciso momento de questionarmos as nossas misérias. Nosso precário desenvolvimento educacional. Nosso ridículo índice de desenvolvimento humano. Brasília é uma ilha em chamas. As atividades tragicamente suspeitas do comandante do senado desencadearam um processo de desabrochar das feridas dos integrantes do parlamento. É hora de nos questionarmos, por exemplo, acerca de nossa (in)segurança pública. Deveria ser lógico. Aliás, é exatamente esse o nosso problema enquanto brasileiros. Não enxergamos a obviedade do vinculo entre nossos parlamentares e nossos defeitos estruturais. Nesses momentos de nossa história, como também o fora, por exemplo, o impeachment do senador Collor, é tempo de sermos cidadãos. Isto é, olharmos às nossas feridas enquanto nação, e compreende-las como a extensão de nossas feridas individuais - manifestas simbolicamente em nossos representantes. As atitudes e atividades de nossos senadores refletem essencialmente o nosso lado mais sombrio. Quiçá por essa razão não visualizemos o nexo referido. Vincular a nossa preocupante taxa de pobreza, portanto, com a postura de nossos dirigentes – significa assumir a nossa responsabilidade. Ou seja, a ratificação que damos para que aconteçam crimes como o do já esquecido menino “João Hélio”. Talvez, as “penas mais duras”, que pedimos às autoridades quando do acontecimento dessas tragédias, devessem ser dirigidas aos nossos dirigentes. Aos nossos parlamentares, que passeiam com diárias públicas, empregam seus parentes e, como implicação, asseguram que se abra um fosso social cada vez maior entre os mais ricos e os mais pobres. O preço que pagamos é a violência. Poderia-se tranqüilamente denominar a nossa política como a “politica da criminalidade”. Nossos políticos, enquanto isso, batem-boca e manifestam suas imensas fragilidades de caráter. A impressão que dá, quando olhamos para Brasília, é que apenas quando desaparecer toda uma geração de políticos é que conseguiremos algum progresso. Ou, quem sabe, quando nascermos de novo e tivermos desconfiança de nossa responsabilidade e cidadania. “Eles”, a parcela mal-feitora do planalto central, somos nós mesmos. O problema é que reservamos as “penas mais duras” sempre para os outros. É essa, infelizmente, a nossa condição.
O campeonato brasileiro de dois mil e nove chegou a última rodada. Certame que se notabilizou pela irregularidade dos times, possui em Flamengo, Internacional, Palmeiras e São Paulo a possibilidade de sagrarem-se seu campeão. Minhas justificativas para defini-lo como um campeonato irregular, têm como referência o time que terá a missão de fazer a final do campeonato junto ao Flamengo, ou seja, o Grêmio Porto Alegrense. O Grêmio é o time mais medíocre do campeonato. Um leão atuando em seus domínios – o temível Olímpico Monumental – o mesmo não passou de um gatinho assustado quando jogou fora. O medíocre termina sempre no “medículo”. O surreal começa a se dar, ao olharmos para as estatísticas do campeonato, e verificarmos que o Grêmio é o melhor ataque da competição. Sim. Nenhum outro clube foi tanto às redes quanto o tricolor da Azenha. O Grêmio pela primeira vez em um campeonato de pontos corridos não perdeu nenhum jogo em seu estádio. Bateu, por exemplo, Atlético-MG, Cruzeiro, Palmeiras, Internacional e Flamengo. Dos melhores ranqueados só não ganhou do São Paulo jogando no Olímpico. Qualquer um desses cinco times, porém, são melhores que o Grêmio no conjunto e nas individualidades técnicas. Tal superioridade acontece a partir de presenças como as de Diego Tardeli e Ricardinho (Galo), Gilberto e Kleber (Cruzeiro), Diego Souza e Wagner Love (Palmeiras), D'alessandro e Juliano (colorado) e Adriano e “Pet” (Flamengo). O tricolor gaúcho tem apenas dois gols sofridos a mais que o São Paulo, detentor da melhor defesa do campeonato. Como destaque, ainda, referimos o fato de Cruzeiro e Atlético terem sofrido quase dez gols a mais que o Grêmio. Alguém dirá, é obra de Vitor, tranqüilamente o melhor goleiro do campeonato, entretanto não se pode creditar apenas ao arqueiro a impossibilidade de se ter as redes vazadas. O campeonato é irregular mesmo. Nenhum clube se impôs ao longo de toda a competição - como Cruzeiro e São Paulo fizeram outrora. Muitos subiram, como o Palmeiras, mas não tiveram subsistência para confirmar a arrancada e garantir o caneco. Nesse caso, inclusive, a queda revelou mais uma vez o nivelamento por baixo, vez que o Palmeiras ao arrancar foi dito como o virtual campeão, sob a singela razão do tri campeão Muricy Ramalho ser o seu comandante. Pois vimos esse ano até mesmo Muricy ser “des-comandado”. Um campeonato medíocre em seu nível só poderia ter seu futuro decidido pelo mais medíocre de seus figurantes. Voltamos ao tricolor gaúcho. Pois o Grêmio ganhou apenas uma partida fora do sul. Do pornográfico Náutico, time que parece fadado a ser a “Geni” dos tempos modernos para o tricolor gaúcho. Os aflitos, como diria o Juremir Machado, sempre esteve mais para um “barraco” que para uma “batalha”. Como sabemos que o cotidiano existe sempre na interpretação que a coletividade dele o faz, solidificou-se como uma batalha. Acho que tal fato foi um pouco prejudicial ao Grêmio. Glorificaram-se alguns pernas-de-pau. Idolatraram-se alguns medíocres. E quiçá por isso passou-se a comemorar “vices”, “vagas” e afins. No futebol o “quase” é o mesmo que a presença do nada. Enfim, talvez “2000 e love” encerre um ciclo gremista que começa no “barraco” da segunda, e se estende até a decisão do campeonato deste ano. Enquanto medíocre, o Grêmio decide já sabendo que “o nada” levará. Decidir pelos outros é como “pegar à gatinha” usando o charme de outro. Por acaso, porém, o destino quis que o Grêmio tivesse um singelo interesse na “gata” deste ano. Joga contra o Flamengo, que chega à partida como primeiro colocado, e que garante o título com uma vitória simples. Detalhe, deixa como vice campeão seu arqui rival, o Internacional de Porto Alegre. Ou seja, o Grêmio garante o campeonato ao Flamengo, deixando o colorado com o “quase”, com uma derrota simples. Puxa vida, que situação! Quase como um tutor do destino do campeonato, o tricolor gaúcho se apresenta como o detentor da guarda da tão cobiçada taça. Aliás, que o diga o Flamengo, que não há trinta anos como o colorado gaúcho, mas a dezessete não consegue leva-la para casa. E o Grêmio, entrega ou não entrega? Acho simples. Analisemos o passado recente do colorado em tais circunstâncias. O Inter decidia o rebaixamento do Corinthians contra o Goiás, e não hesitou em não-vencer e condenar o timão à segunda divisão, como “paga” pelo campeonato fraudulento que o Corinthians vencera outrora. O “Zveitão”, como ficou conhecido, devido a manobra de Luiz Zveiter, um “cartola” altamente suspeito que anulou os jogos em benefício do timão. Temos, ainda, o time de reservas do colorado no enfrentamento com o São Paulo, na reta final do campeonato de 2008, cujo título o tricolor paulista disputava com o gaúcho. Nesse horizonte, temos um modelo. E ele diz que a ética de um clube de futebol tem compromisso apenas com o afeto de seus torcedores (a maioria). Sim, sabemos, os dirigentes não podem ser passionais, pois em uma “era dos mercados” como a nossa, devem a responsabilidade pelas contas e negócios do clube. Entretanto, todo dirigente começou como um “torcedor”. Alguns poucos torcedores se profissionalizam, e assim se transformam em “dirigentes”. Mas a passagem do vínculo ocorre do torcedor para o dirigente. Dessa forma, é o sentimento afetivo dos torcedores a essência de um clube de futebol. É a sua aura, a sua alma, a sua pulsão de vida. Os homens cotidianos enquanto torcedores, permitem-se a paixão verdadeira de Homens cotidianos ali completamente “abertos”. Quem já experimentou pedir um “cigarrinho” amigo a um sujeito no jogo de futebol? Se o time está ganhando, ele dá pela felicidade compartilhada, se está perdendo ele dá pela união na angústia. O estádio é um grande “cimento social”, como diz Maffessoli. É um casamento na saúde e na doença. Talvez o único casamento eterno que um sujeito possa se comprometer. Por isso os clubes devem a sua existência a tal conjunto de paixões. Assim o colorado agiu. Creio que o Grêmio agirá também. Todos aprenderão. O tempo continua fazendo com o que o mundo dê voltas. O Internacional sofrerá de seu veneno de outrora, aprenderá que Nilmar “custa” caro na “decisão”, e que um vestiário muito tempo raxado também. O Grêmio se de fato estiver encerrando um ciclo, que não apenas o do “lento” capitão Tcheco, talvez aprenda a ser gente grande ao sair de casa para voltar a vencer. Se “quem sempre quer vitória perde a glória de chorar”, então restará aos clubes da província cantarem com Camello e lamberem às feridas do centenário ano do clássico grenal.
Jayme Camargo da Silva nasceu e cresceu entre o Centro e o Bom fim em Porto Alegre. Gremista de formação futebolistica, tendo atualmente uma relação apaixonada, porém bem-resolvida com seu time do coração. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito) aos 22 anos (OAB/RS 65.719). Mestre em filosofia pela PUC/RS, na linha de pesquisa em Fenomenologia e Hermenêutica sob orientação de Ernildo Stein, trabalhando o problema do conhecimento e a filosofia da técnica no pensamento de Martin Heidegger. Fundador e primeiro coordenador do grupo de pesquisa "CINESOFIA - cinema e filosofia", junto ao PPG em comunicação da PUCRS (FAMECOS), sob coordenação de Juremir Machado da Silva. Atualmente é professor de Direito e Filosofia, além de consultor Unesco da Secretaria da Presidência da República (SNJ/PR), responsável pela elaboração do sistema nacional de juventude.