É necessário
ter o caos dentro de si para gerar uma estrela (Nietzsche)
Tudo se transforma em melodia com Jorge
Drexler: música e cotidiano
As canções de Jorge Drexler são sensíveis e
inquietantes. Sua poesia em espanhol é facilmente compreensível em português. É
uma poesia recheada de diferenças. A sonoridade também é tomada por gostosas
misturas. As melodias das suas canções brincam de diferentes maneiras. Brotam
de diversas culturas. Cada musica é uma imersão em uma experiência única. E
assim formadora de luminosos instantes poéticos. Instantes eternos, sentidos via
sensibilidade. A harmonia do uruguaio também tem um quê de “sinergia entre o
arcaico e o tecnológico”, parafraseando o provocativo sociólogo da cultura Michel
Maffesoli. Afinal, Drexler junta colheres de alumínio batendo em taças de vidro
com “samplers” e outros recursos eletrônicos; tal como na italiana “Lontano, lontano”.
Por isso a referência à arte do uruguaio associada à categoria que Maffesoli
utiliza – ao descrever o cotidiano pós-moderno de nossa época. “Lontano”, que
significa longe em italiano, marca uma distância que não se verifica em relação
à pluralidade idiomática na arte de Drexler. Ele canta em inglês, português, o
natural espanhol, como também no italiano de lontano. Escutando algumas músicas
pensei em algo como uma milonga pós-moderna. Aliás, há muita milonga nas
canções de Drexler, porém temperadas com muitos efeitos e detalhes que as
conduzem para além das tradicionais milongas de outrora. Drexler cria com muita
sensibilidade pequenos lugares em suas músicas. Tais lugares criam um espaço de
transcendência poética daquele que escuta ao conjugar sensível e profunda
poesia com melodias incríveis.
A musica “la vida es mas compleja de lo que parece” (a
vida é mais complexa do que parece) traz o importante tema da complexidade do
cotidiano. Enquanto em geral somos guiados pelos objetos, a linearidade de nosso
olhar nos cria o obstáculo de “ver” a profunda complexidade das coisas além-superfície.
Diz a canção: “Yo estaba empeñado en no ver, Lo que ví, pero a veces, La vida
es mas compleja de Lo que parece”. No horizonte da complexidade, que segundo o
pensador Edgar Morin diz “tudo está ligado a tudo”, Drexler canta o desencanto
de Disneylândia. E sua Disney está essencialmente nesse cruzamento de tudo com
tudo. Há certo tom árabe distante em que Drexler cantarola essa poesia. Ora, se
Disneylândia pode ser considerada o símbolo do ocidente – enquanto que o mundo
árabe nos remete ao não-ocidental, então a canção nos coloca de frente às
ironias do consumo de “Mickeys”.
No horizonte de uma velha querela, Drexler canta uma
milonga de um mouro-judeu que vive com os cristãos, e que é irmão de todos dada
a sua origem. Sim, não há povo que não se (a)credite como o povo elegido. Enquanto
seres humanos, somos todos o tal povo escolhido. É a possibilidade do encontro
na diferença. Já “Guitarra y voz” mostra que algumas vezes o sentido vem sempre
no fim.
Em todas as suas composições os sentimentos fazem ”Eco”.
Eles vertem. Um romantismo permeado de sagacidade. Por vezes de forma imagética
na descrição, como o sujeito que olha pela janela do bar e vê em todas as
mulheres que passam aquela que ele ama (“Causa y efecto”). Às vezes como nas “Horas”
que passamos plugados com aqueles que amamos. Também imagética a metáfora de “Cara
B”, pois quantas vezes não arranhamos o nosso relacionamento ao cobrarmos
aquilo que não é real. “Inoportuna” rememora que os amores e paixões não avisam
a hora de chegar – eles nos atravessam. Cruzam a nossa vida causando uma
deliciosa sensação de “o que devo fazer?”. Não queremos respeitar o tempo
nesses momentos, ou seja, o amor é urgente!
Na música “La infidelidad de la era de la
informática”, não há separação entre forma e conteúdo. O barulhinho do MSN na
melodia, adicionado a temas da era da informática em sua letra, retrata uma
nova condição de administração dos espaços em um relacionamento afetivo: o
espaço virtual.
Em seu último trabalho, “Amar la trama” (2010), o
compositor veio com um disco marcado por instrumentos de sopro, com uma
minuciosa atmosfera jazzística. Nesse sentido, “Mundo abisal” – talvez a melhor
música do disco – nos conduz a uma imersão ao interior do mundo do amor. Tanto
enquanto amor carnal, pois Mundo abisal é a descrição da cópula perfeita; tanto
enquanto ao mais abstrato, pois é a descrição do amor enquanto a sensação do
sublime. No clímax da canção temos a imagem de estarmos transcendidos ao mundo
abissal. E é quando entra um solo de saxofone abafado, lá embaixo. Dentro de
tal mundo...
Poderia continuar por mais diversas canções a
encontrar significativas referências de sentido. Entretanto, paro não sem “Antes”
descrever como tudo se transforma em melodia com Drexler. Disse Lavoisier:
"Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E
Drexler transformou em poesia.
Sua canção ilustra que ao nos relacionarmos está em
nossa natureza projetar aquilo que recebemos, isto é, aquilo que já trazemos
como nossa bagagem; pois já sempre estamos em algum ponto de nossa própria
história. Afinal, somos seres históricos. Assim sendo, quando nos encontramos
com o outro, “cada uno lo da, lo que recibe, y luego recibe lo que da”. Damos a
projeção de nossa história e ao mesmo tempo somos projetados historicamente
pelo outro. Assim nos relacionamos. Não poderia haver mais bela conclusão: nada
se perde, pois tudo se transforma! Tudo se transforma em história quando
estamos afetivamente juntos ao outro. E desse modo tudo se transforma em nossa
história. É o colorido da vida. Talvez como Nietzsche, Jorge Drexler perceba a
existência humana como a atividade de dar cores ao cotidiano.
Jayme Camargo da Silva
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