segunda-feira, 25 de novembro de 2013

música e cotidiano



É necessário ter o caos dentro de si para gerar uma estrela (Nietzsche)

Tudo se transforma em melodia com Jorge Drexler: música e cotidiano

As canções de Jorge Drexler são sensíveis e inquietantes. Sua poesia em espanhol é facilmente compreensível em português. É uma poesia recheada de diferenças. A sonoridade também é tomada por gostosas misturas. As melodias das suas canções brincam de diferentes maneiras. Brotam de diversas culturas. Cada musica é uma imersão em uma experiência única. E assim formadora de luminosos instantes poéticos. Instantes eternos, sentidos via sensibilidade. A harmonia do uruguaio também tem um quê de “sinergia entre o arcaico e o tecnológico”, parafraseando o provocativo sociólogo da cultura Michel Maffesoli. Afinal, Drexler junta colheres de alumínio batendo em taças de vidro com “samplers” e outros recursos eletrônicos; tal como na italiana “Lontano, lontano”. Por isso a referência à arte do uruguaio associada à categoria que Maffesoli utiliza – ao descrever o cotidiano pós-moderno de nossa época. “Lontano”, que significa longe em italiano, marca uma distância que não se verifica em relação à pluralidade idiomática na arte de Drexler. Ele canta em inglês, português, o natural espanhol, como também no italiano de lontano. Escutando algumas músicas pensei em algo como uma milonga pós-moderna. Aliás, há muita milonga nas canções de Drexler, porém temperadas com muitos efeitos e detalhes que as conduzem para além das tradicionais milongas de outrora. Drexler cria com muita sensibilidade pequenos lugares em suas músicas. Tais lugares criam um espaço de transcendência poética daquele que escuta ao conjugar sensível e profunda poesia com melodias incríveis.

A musica “la vida es mas compleja de lo que parece” (a vida é mais complexa do que parece) traz o importante tema da complexidade do cotidiano. Enquanto em geral somos guiados pelos objetos, a linearidade de nosso olhar nos cria o obstáculo de “ver” a profunda complexidade das coisas além-superfície. Diz a canção: “Yo estaba empeñado en no ver, Lo que ví, pero a veces, La vida es mas compleja de Lo que parece”. No horizonte da complexidade, que segundo o pensador Edgar Morin diz “tudo está ligado a tudo”, Drexler canta o desencanto de Disneylândia. E sua Disney está essencialmente nesse cruzamento de tudo com tudo. Há certo tom árabe distante em que Drexler cantarola essa poesia. Ora, se Disneylândia pode ser considerada o símbolo do ocidente – enquanto que o mundo árabe nos remete ao não-ocidental, então a canção nos coloca de frente às ironias do consumo de “Mickeys”.

No horizonte de uma velha querela, Drexler canta uma milonga de um mouro-judeu que vive com os cristãos, e que é irmão de todos dada a sua origem. Sim, não há povo que não se (a)credite como o povo elegido. Enquanto seres humanos, somos todos o tal povo escolhido. É a possibilidade do encontro na diferença. Já “Guitarra y voz” mostra que algumas vezes o sentido vem sempre no fim.

Em todas as suas composições os sentimentos fazem ”Eco”. Eles vertem. Um romantismo permeado de sagacidade. Por vezes de forma imagética na descrição, como o sujeito que olha pela janela do bar e vê em todas as mulheres que passam aquela que ele ama (“Causa y efecto”). Às vezes como nas “Horas” que passamos plugados com aqueles que amamos. Também imagética a metáfora de “Cara B”, pois quantas vezes não arranhamos o nosso relacionamento ao cobrarmos aquilo que não é real. “Inoportuna” rememora que os amores e paixões não avisam a hora de chegar – eles nos atravessam. Cruzam a nossa vida causando uma deliciosa sensação de “o que devo fazer?”. Não queremos respeitar o tempo nesses momentos, ou seja, o amor é urgente!

Na música “La infidelidad de la era de la informática”, não há separação entre forma e conteúdo. O barulhinho do MSN na melodia, adicionado a temas da era da informática em sua letra, retrata uma nova condição de administração dos espaços em um relacionamento afetivo: o espaço virtual.

Em seu último trabalho, “Amar la trama” (2010), o compositor veio com um disco marcado por instrumentos de sopro, com uma minuciosa atmosfera jazzística. Nesse sentido, “Mundo abisal” – talvez a melhor música do disco – nos conduz a uma imersão ao interior do mundo do amor. Tanto enquanto amor carnal, pois Mundo abisal é a descrição da cópula perfeita; tanto enquanto ao mais abstrato, pois é a descrição do amor enquanto a sensação do sublime. No clímax da canção temos a imagem de estarmos transcendidos ao mundo abissal. E é quando entra um solo de saxofone abafado, lá embaixo. Dentro de tal mundo...

Poderia continuar por mais diversas canções a encontrar significativas referências de sentido. Entretanto, paro não sem “Antes” descrever como tudo se transforma em melodia com Drexler. Disse Lavoisier: "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E Drexler transformou em poesia.

Sua canção ilustra que ao nos relacionarmos está em nossa natureza projetar aquilo que recebemos, isto é, aquilo que já trazemos como nossa bagagem; pois já sempre estamos em algum ponto de nossa própria história. Afinal, somos seres históricos. Assim sendo, quando nos encontramos com o outro, “cada uno lo da, lo que recibe, y luego recibe lo que da”. Damos a projeção de nossa história e ao mesmo tempo somos projetados historicamente pelo outro. Assim nos relacionamos. Não poderia haver mais bela conclusão: nada se perde, pois tudo se transforma! Tudo se transforma em história quando estamos afetivamente juntos ao outro. E desse modo tudo se transforma em nossa história. É o colorido da vida. Talvez como Nietzsche, Jorge Drexler perceba a existência humana como a atividade de dar cores ao cotidiano.

Jayme Camargo da Silva

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