segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

ciclos

MATAR O CHEFÃO E PASSAR DE FASE

Eu estava conversando com um grande amigo meu. Ele referia-se a como é difícil se relacionar com uma pessoa que não encerra as suas histórias passadas. Falávamos ao telefone, e quando ele fez essa menção, ascendeu uma lamparina em minha cabeça corroída pelo Jornal Nacional. De fato, é uma bronca grande estar com alguém que não sabe fechar os ciclos. E quantas vezes não somos nós próprios que estamos nessa condição? É sempre diligente olhar para o próprio umbigo...

Acho que essa dificuldade, quiçá, passe por não enxergarmos que já “matamos o chefão” e passamos de fase, como nos referíamos aos joguinhos de nossos video-games dos anos 90. Por falar em “jogos”, acaba sendo uma possibilidade constante para aquele que deixa as histórias em aberto. É terrível quando envolvemos o outro que não está a fim de jogar, em nossas emaranhadas “partidas” que já deveriam ter acabado.
Creio que outra consequência de deixar pequenas histórias sempre com reticências é que dificilmente conseguimos construir uma relação mais sólida e constante. Não que isso seja um problema, pois dá para ser muito feliz solteiro(a), sobretudo em uma terra pródiga como POA. Aliás, é possível utilizar a circunstância do amor aos desígnios da vida (Amor fati) para se representar essa dupla possibilidade de felicidade. É muito bom ser casado, mas também são significativos os prazeres de ser solteiro.

Voltando ao não encerramento dos ciclos já vivenciados, penso que podem revelar problemas na ligação com a própria história daquele que se mantém nessa condição. Não tenho plena certeza, mas desconfio que haja algum vínculo entre o modo com que atribuímos alguns significados a partir da nossa historicidade e o grau de maturidade que temos dos aprendizados históricos registrados. Explico: se o crescimento deriva da capacidade de superar as pequenas e grandes mortes cotidianas que atravessamos, dos prazos de validade que as coisas têm, então não saber pontuar alguns finais podem nos deixar sem o desenvolvimento destas maturidades. Deixar em aberto é não preencher conosco alguns buracos da nossa história. Talvez, não (re)conhecer o tempo lógico das coisas.

Com relação aos ciclos, a relevância das histórias nas uniões afetivas parece ser o tema de uma canção de Jorge Drexler. “Todo se transforma”, ilustra que ao nos relacionarmos, projetamos aquilo que recebemos, ou seja: o que já trazemos como nossa bagagem; pois já sempre estamos em algum ponto de nossa própria história. Nesse sentido, quando nos encontramos com o outro, “cada uno lo da, lo que recibe, y luego recibe lo que da, nada es más simples, no hay otra norma: nada se pierde, todo se transforma.”. Projetamos a nossa história e ao mesmo tempo somos projetados historicamente pelo outro. Tudo se transforma em história quando estamos afetivamente juntos. E desse modo, tudo se transforma em nossa história. Daí, o quão fundamental parece ser a maturidade com que manejamos a nossa vida histórica. E que encerrar as histórias passadas pode ser um importante aprendizado.
Jayme C

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

relações e desejos

A (anti)ética do desejo

Um critério possível para um casal estabelecer em uma relação a dois é o da ética do desejo. Ou seja, que as pessoas sempre façam aquilo que estão querendo quando distantes e não precisem compor os desejos. Evita que o outro seja visto como uma castração, na medida em que sempre apóia que banquemos o que queremos fazer.

Não ser sentido pelo parceiro como um obstáculo para a execução do seu querer é uma importante conquista de algumas relações. Não que seja fácil conseguir esse horizonte. Muita afinidade, diálogo e lealdade são elementos decisivos nessa constituição. Além de muito amor, é claro, pois a entrega de ambos à relação deve ser sentida com reciprocidade. A existência ou não de similitude na dedicação de cada um serve como termômetro da relação.

Entretanto, a ética do desejo pode ter os seus revezes. Nos momentos de instabilidade na relação, pode ser um fator de insegurança para o parceiro. Quando os casais atravessam turbulências, por vezes os sujeitos se abrem para vivências às quais estavam fechados nos tempos de felicidade... Nesses contextos pode-se ter dificuldade ao optar pela ética do desejo. Em outros termos, talvez se devesse perguntar como agir quando o nosso desejo se torna colidente com o desejo do outro. O que fazer entre bancar o que queremos e a necessária consideração com o parceiro em nossas opções? Nesses momentos, a ética do desejo pode implodir de vez com uma relação que está cambaleando.

Um olhar antropológico, sobre essas questões, pode apontar a primazia do individualismo como base da ética do prazer, pois uma relação com esse grau de liberdade só se realiza com duas pessoas com concretude, que se satisfazem consigo mesmas, que sejam plenamente independentes. A essa concepção pós-moderna se contrapõe outra que não é capaz de conceber amor sem a união dos corpos, dos desejos e dos projetos de vida. Tradicionalmente, o amor não é viável sem que as pessoas sejam capazes de se entregar ao outro.         

É difícil construir critérios quando estamos nos relacionando afetivamente com alguém. Cada sujeito é um mundo com as suas particularidades históricas. E, desse modo, cada um dos amantes chega à relação com um modo de ser único em suas práticas. Talvez, o desejo do outro seja um excelente critério quando conhecemos bem o nosso parceiro. Talvez, funcione quando haja sintonia nas maturidades de ambos. Ou não, talvez a ética do desejo se revele frágil nos momentos de crise ou de falta de reciprocidade na transparência. São os paradoxos de um mundo no qual os valores estão constantemente em franca transformação. Como diria Caetano, em seu terno dom de iludir: “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Jayme C.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

paradigma da dor

Chão de barro

Quando minha avó morreu abriu-se o chão e eu cai num abismo. Isso porque, mantive uma complexa relação de amor com ela. O que me atrapalhou na demonstração de afeto a outras pessoas enquanto ela foi viva. Em verdade, o afeto partiu dela.

Meu avô, com quem ela casou com 18 anos, sofreu um acidente e morreu repentinamente quando ambos tinham 46 anos. Ficaram apenas as três mulheres – minha avó, minha mãe e minha tia. O meu avô se chamava Jayme de Azevedo Camargo. Eu nasci quatro anos após a sua morte, e minha mãe lhe rendeu a homenagem projetada no nome que me deu. Resultado de tudo, é que fui dois “Jaymes” no imaginário delas.

O sofrimento pela perda de vovó foi até seu último batimento cardíaco. Deu-se ao vivo. Era uma tarde abafada de setembro. Minha avó estava tomada pelo câncer e sabia-se que eram os seus últimos dias. Estava em um quarto do hospital e não na UTI, pois não havia mais volta. Saí da Puc às 11 e 30 e fui direto para lá, onde encontrei minha mãe. Pouco depois, fomos para casa almoçar. Imediatamente, após comer disse para mamãe que ia voltar para o hospital. Discutimos, pois ela queria que eu fizesse outra coisa antes de voltar para junto de minha avó.

Saí porta afora e voltei para o hospital. Estava no quarto, eu, uma sobrinha de minha avó e mais uma pessoa que não me lembro. Eu estava sentado em um banco bem junto ao leito, abraçado nela. Meio que cochilei e me acordei com a fala da sobrinha: “o coração da tia está parando de bater”. Comecei a chorar e abraçado em sua barriga fui sentindo o coração de “vovolinha” lentamente parar. Como disse no começo, fiquei sem chão.

Anos depois, em uma das muitas sessões de terapia com o meu querido ex-psicólogo Dr. Fausto Lemos, eu me percebi relatando que não apenas tinha caído em um abismo, mas que no fim da queda eu me esborrachei em um chão de barro, aquele barro bem vermelho. Senti a condição de nenhum outro horizonte que não apenas o chão duro de barro vermelho. Dá para se imaginar o que significou esse sofrimento na minha pele... Foram meses de muita dor. De lágrimas incontidas em dias de torpor existencial. O maior sofrimento da vida.

Esse momento vivido há 14 anos tornou-se o meu paradigma para o que é sofrer e sentir dor. Em palavras terapêuticas, o meu mito de (re)fundação existencial. Acho que talvez por isso o meu imaginário referiu-se ao chão de barro, metáfora perfeita para a possibilidade de re-modelagem. A mistura da dor com a sensação de estar perdido é algo deveras difícil no horizonte do sentido. Enfim, ao se tornar o meu referencial de sofrimento, a perda da minha avó só vem à tona nos momentos mais difíceis. E sempre reverbera um ensinamento em meu coração: só a morte encerra, em definitivo, as nossas possibilidades. No mais, como diria um amigo poeta, vida é fortuna, fado e circunstância.         

Jayme C.