terça-feira, 23 de novembro de 2010

Novos Baianos em Buenos Aires – “apenas viro me viro”...

Fui a Buenos Aires com um grupo multicultural. Éramos brasileiros, japoneses, chineses, hondurenhos e espanhóis. Não vou nem falar do charme e “interessância” da cidade, pois tal – outros com mais gabarito sabiamente já o fizeram. Falarei de uma festa não menos multicultural que acabei fazendo. Essa noite havia começado cedo. Eu e o pessoal com o qual viajei tínhamos ido a um lugar pouco antes de “Palermo”. Era um domingo à noite. A festa era de hip-hop. O lugar me (a)pareceu de dois modos. Primeiro com o que ele pretendia ser, ou seja, seu projeto era ser uma espécie de “elo perdido” – lugar em que rolavam festas interessantes na rua Garibaldi no fim dos anos 90. Do outro modo, vi o lugar como aquilo que se tornou, ou seja, conforme seus habitantes, músicas e práticas, isto é, parecia estar no “Gê Powers” – bar de black music também na província da virada do milênio. Acabamos voltando para o hostel umas 3 e meia da manhã. Todos foram direto para os seus quartos. Eu, de outra banda, fui comer meu sagrado alfajorzinho antes de dormir. Em Buenos Aires é sempre de bom tom comer um alfajorzin antes de dormir... Torna-se mais fácil sonhar com os anjos. E não deu outra: com um anjo me encontrei. E acabou não sendo no sono. Antes pelo contrário, acabou sendo um sonho.


Ouvi ruídos e vozes ao fundo do hostel, enquanto preparava para me retirar ao leito. Resolvi, no melhor estilo Bial, dar uma “espiadinha”. Assim, avistei uma festa rolando na cozinha/salão de festas. Fui prontamente convidado a me juntar ao grupo, por um menino americano chamado “Ethan”. Ele era da Califórnia, mas estava morando em Buenos Aires. Olhei a festa mais de perto e logo diagnostiquei – havia apenas 3 meninas e um bando de “cuecas”. Uma delas misteriosamente sumiu pouco depois que eu me aproximei. Uma outra estava com uma criança e um “magrão” a tira-colo pajeando a sua atenção. A terceira estava em um grupo que tinha bolivianos, argentinos, americanos e espanhóis. Ela falava constantemente e em espanhol. Era uma gatinha. Fiquei uns 28 minutos naquele chove-não-molha e estava praticamente abortando a missão. Quando de repente a bela garota que falava espanhol interrompeu uma fala no grupo que estava ao meu lado, e fez uma interjeição em português. Olhei para ela com alegria na retina e disse: “Tu fala português?!”. E ela também com alegria e surpresa respondeu: “E você também. E bem!”. Daí eu disse que era brasileiro, de Porto alegre, e indaguei de onde ela era aqui no Brasil. Ela disse que era mineira. Eu perguntei se de “BH”. E ela falou que não, referindo que era de Varginha. Quase sem pensar estiquei o dedo indicador direito e com uma voz roca declarei: “ET telefone minha casa”. E ela reciprocamente parodiou meu gesto e minha fala. E completou dando um lindo e largo sorriso: “que coisa boa falar com um brasileiro”. Seu nome era Thais. Estava há alguns dias em Buenos Aires e se sentia um pouco só naquela noite. Ethan, percebendo nossa sincronia nas metáforas de nossa língua, aproximou-se de nós, e abraçando Thais, tacou-lhe um beijo. Era um beijo do tipo – “olha aqui, ela já está ficando comigo, sai para lá...”. Eu fiquei dividido entre o encantamento pela menina da cidade onde os ets foram supostamente vistos, e o respeito pelo gringo que me havia sido gentil.


Conversamos mais meia hora quase que apenas um com o outro e o encantamento felizmente era compartilhado pela mineirinha. Ela tinha uma sensibilidade legal e também era inteligente; ou seja, “nos achamos”. Quase que juntos propusemos um ao outro sair daquela festa e ir caminhar pelas ruas de Buenos Aires. Desejávamos flanar com uma liberdade que as ruas de “Amsterdam” melhor aceitariam. Uma dupla liberdade, aliás, pois um beijo entre nós era algo premente. Pois, ela recolheu seu agasalho e sua bolsa, deu “adiós” a todos, e saiu de mão dada comigo. Ao cruzarmos a porta do hostel (que se chamava Tango) nos beijamos com vontade. Ganhamos a madrugada de Buenos Aires juntos. Fomos cantarolando até a rua “nove de julho” e lá começamos a cantar e dançar: “quando cheguei tudo/ tudo/ tudo estava virado/ apenas viro-me-viro/ mas eu mesma viro os olhinhos/ só entro no jogo porque/ estou mesmo depois/ depois de esgotar o tempo regulamentar...”. A menina dançou. E foi lindo. Senti-me como uma espécie de Al Paccino pós-moderno em um “perfume de mulher” à brasileira. Nada mais tupiniquim que um “viro-me-viro” para efetivar um afeto.

Jayme Camargo da Silva - primavera de 2010


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

"delírio" na feira do livro...


O acesso ao direito como possibilidade de transformação social

A crítica mais especializada do direito tem duramente batido no saber jurídico dos manuais. Sustentam, com razoáveis justificativas, que o conhecimento jurídico mais qualificado não se faz presente nessa espécie da literatura jurídica. De fato, os manuais acabam se esgotando em uma eterna reprodução de lugares-comuns. Entretanto, essa posição deve ser devidamente caracterizada com relação ao seu lugar. Ou seja, essa crítica deve ser dirigida aos bancos acadêmicos das faculdades de direito do nosso país. Talvez, aos “brancos-acadêmicos” de nosso direito, futuros juristas de nossa pátria e, por conseguinte, responsáveis pela administração de nossa justiça. Por isso a necessidade que as instituições de ensino do direito refundem sua base teórica. Afinal, são as responsáveis pela formação daqueles que se responsabilizarão por nós, como dito acima, os juristas encarregados da administração de nossos conflitos. É importante ressaltar, contudo, que os litígios envolvem normalmente pessoas que, em sua maioria, desconhecem a linguagem jurídica. Ou seja, a grande massa da população brasileira sequer conhece seus direitos. Melhor dizendo, sequer reconhece seus direitos em meio aos conflitos da vida cotidiana. Daí se implica uma carência da nossa população: o excessivo tecnicismo dos operadores do direito impede que as pessoas identifiquem o que está dito nos códigos, com as suas demandas da vida cotidiana. Há uma separação, portanto, entre o mundo dos direitos que os cidadãos têm prescritos em lei, e o mundo da vida em que as pessoas de “carne-e-osso” estão. Não se estabelece, no Brasil, uma passagem fundamental, que é a transformação da “pessoa” em cidadão. Ora, os juristas pela obstrução da linguagem jurídica, possuem a sua parcela de responsabilidade pela (in)capacitação dos cidadãos. Justamente aqueles que deveriam fazer a passagem dos direitos aos indivíduos, ou seja, esclarecer os códigos no contexto concreto das pessoas, são os que reforçam a separação. Chegamos, assim, na seguinte situação: os juristas ainda muito reféns - em sua formação - do saber “pasteurizado” dos manuais, são omissos em sua aplicação do direito, com relação ao desconhecimento dos direitos pelas pessoas. Dessa conclusão nos resulta um problema de duas vias: 1) o ensino do direito deve tornar-se o mais crítico e transdisciplinar possível – visando uma melhor formação dos operadores; 2) a grande massa da população brasileira deve ser educada com relação aos seus direitos – elevando sua condição à categoria de cidadão. É, pois, na direção do segundo problema que caminha a presente publicação. E não poderia ser diferente. Cientes e conscientes do enorme divórcio entre o povo e os seus direitos, o grupo ABDO, com essa publicação, assume para si parte do problema antes descrito. Pretende, portanto, antes a atenção das pessoas mais carentes e necessitadas de instrução jurídica, às doutas autoridades da academia. O grupo ABDO percebe o acesso ao direito como uma possibilidade de transformação social. Por isso opta pelo problema das pessoas em sua grande maioria. Oxalá as pessoas conquistem a sua cidadania em nosso território. Oxalá essa pequena obra contribua para essa melhoria. Por isso um sistema mais simples possível de transmissão do conhecimento: através de perguntas e repostas. Deixemos, portanto, que o próprio leitor dialogue com o livro, assim relacionando os seus direitos e sua vida efetiva. Concluo, juntamente ao eterno Mário Quintana, referindo que para todos aqueles que acham que outro Brasil não é possível, vocês passarão nós passarinho!

Jayme Camargo da Silva,
mestrando em filosofia e ex-advogado