quarta-feira, 28 de setembro de 2016

antes do primeiro beijo

ANTES
Eles se conheceram em meados dos anos 90. Porém, o contato dessa época resumiu-se apenas a falsa memória de que haviam sido colegas. Na virada do milênio, dividiram o mesmo prédio da faculdade, ela nos estudos da alma e ele nos estudos do pensamento. Nesse tempo, conviveram eventualmente por conta de um casal amigo que os colocou em espaços compartilhados. Ele era chato e arrogante, pois tinha consigo na juventude de seus 20 anos a ilusão de todas as verdades sobre a vida. Ela não deixou de perceber isso.
Ela foi morar na Europa, casou e construiu a sua biografia existencial potencializando as características que ele já percebera outrora, isto é, sensibilidade, inteligência e personalidade na discrição. A passagem do tempo lhe foi benéfica de diversos modos, a sua beleza aos trinta reluzia mais ainda do que no passado. Ele também cresceu. Os anos lhe tornaram mais leve e interessante. Segundo a leitura de si mesmo, a sua grande revolução passou por perceber que os outros são o nosso termômetro existencial, ou seja, no contato com o outro é que se revela concretamente quem somos...
Nesses anos que passaram, é digno de nota, ele tentou sem sucesso algum contato. Entretanto, em idos de abril, ele viu uma foto dela no Facebook e sem a presença do ex-companheiro. Após trocarem algumas mensagens, ele a convidou para sair em uma sexta feira, mas recebeu mais uma negativa e pensou: nunca será... Ele desconfiava que ela o visse com olhos do passado e que nunca descobriria quem ele era hoje em dia. No sábado, porém, ela o procurou para uma ceva e uma prosa.
De fato, ela tinha a dúvida se ele ainda era a mesma mala de antes. Consultou uma amiga em comum e ela atestou a possibilidade de ser um encontro massa. Ela foi a casa dele e eles conversaram durante mais de quatro horas. Um papo gostoso e profundo, permeado de fundamentos que só foram enunciados em nome do bom humor. Um mar de afinidades veio à tona, desde a visão de mundo até as questões mais acessórias... Trocaram olhares desejantes e aí o coração dele disparou em pulsações incontidas. Erroneamente, achou que era pelo receio do desejo do beijo ter brotado apenas em si. Não era esse o caso.
O Abraço mais bonito e demorado de suas vidas se seguiu ao primeiro beijo. O coração acelerado e o abraço estendido eram sinais do amor pleno que a vida lhes congratularia. Nunca mais se afastaram e na recíproca abertura das almas, registraram a reinvenção constante do amor que os fez eternamente apaixonados. Em um de seus intensos encontros, ela disse: te amo não apenas pelo que tu és, mas por tudo aquilo que tu podes vir a ser. Ao que ele respondeu: te amo desde antes, desde antes do primeiro beijo.
JC

terça-feira, 21 de junho de 2016

tempo no envolvimento

LÁ VEM TEXTINHO (leitura de 1'13 para não te cansares)



Na minha dispensável opinião, a expressão “lá vem textão” reflete algo do pior que a nossa geração tem. Simboliza a ilusória falta de tempo para o envolvimento com qualquer coisa. Entregamos a nossa felicidade às ordinárias rapidinhas existenciais (nos múltiplos campos da vida). Zygmunt Bauman escreveu sobre o amor liquido, sob essa perspectiva de que as pessoas não conseguem mais se conhecerem verdadeiramente; e essa condição implicando a fragilidade dos laços no cotidiano. Com relação à leitura, local-de-fala originário da malfadada expressão, a pobreza de conteúdo (“de geral”) é uma terrível consequência de não lermos mais de dez linhas sem perdermos a atenção. Nada mais nos prende, nada mais nos toca, nada mais... nada! Obviamente, o vazio existencial torna-se imperante. Carência, ansiedade e angústia são as marcas da geração que não sabe lidar/respeitar o tempo das questões mais essenciais e, desse modo, lê apenas o raso e o superficial. Comecei a ler ontem (pela terceira vez), “O idiota” (683 pgs.), do Dostoievski. Na última tentativa fui até a página 317, mas fui vencido pelo que agora é objeto da crítica. Dostoievski é o meu escritor do coração – aprendi a delícia que é investigar a alma humana a partir de sua literatura. “O idiota” traz no personagem central o “homem bom dostoievskiano”. Entretanto, os nossos idiotas são os que precisam de desculpa quando diante de um textão; esses, infelizmente, não conhecerão “Dostô” – até porque dilacerar a alma humana leva bem mais do que alguns minutos.
Jayme C.

amor

APRENDENDO (A MOR)RER


O querido amigo Mau Saldanha me procurou dizendo que ia fazer um documentário sobre os términos das relações amorosas. O Mau é um sujeito de muito coração e que acredita na força do amor como um elemento essencial na vida. Desse modo, é esse o pano de fundo que ele quer captar por trás dos términos das relações. Afinal, o amor nos toca nos começos, mas o seu anunciado desaparecimento nos términos implica o desconforto da presença na ausência...


Gravamos a minha participação no filme e devido ao meu estado de espírito atual soltei mais o lado bem humorado do que o melancólico. Narrei um “causo” de uma malfadada história com uma garota paulista que era defensora do Paulo Maluf, pois tive que terminar com ela em meio ao natal (época sugestiva para correções de rumo). Como ela era adepta da inqualificável direita cristã, revestiu-se de dificuldade o meu movimento em uma data tão significativa. O Mau deu muita risada, mas não escondeu que estava querendo o meu lado triste e não o seguro de si em suas galhofas cotidianas.

Em nossa conversa filmada, sustentou a sensível ideia de que o amor é o nosso grande ensinamento para a morte. Ou seja, com o passar do tempo nos entramos nas relações amorosas com um grau bem diminuto da ilusão de que será eterna. Depois da repetição de alguns términos, a maturidade inscreve-se em nossa derme já curtida pela melancolia da finitude. Nesse contexto, as lágrimas que por amor derramamos são preparatórias para as mortes concretas que enfrentaremos ao longo da tarefa de vivermos a vida. Ao escutar o meu amigo cineasta, imediatamente, disparei: “aprendendo a morrer... ” (será o título do documentário!). Talvez, esse horizonte faça justiça à grandiosidade do amor em todos os seus atos, isto é, pela quimera encantadora dos começos, mas também pelo difícil aprendizado nos finais.
Jayme C.